Como um pequeno estado americano tornou-se a “capital mundial das empresas fantasmas”.
Embora a imagem mais comum de um paraíso fiscal remeta a ilhas “exóticas” como Bermudas, Ilhas Virgens Britânicas ou Chipre, o verdadeiro refúgio corporativo pode estar dentro dos próprios Estados Unidos. Delaware, o segundo menor estado americano, é hoje considerado um paraíso fiscal doméstico, onde há mais empresas registradas do que habitantes.
Conhecido como The First State por ter sido o primeiro a ratificar a Constituição dos EUA, Delaware abriga cerca de 2 milhões de entidades corporativas, segundo estimativas do Delaware Division of Corporations. Entre as empresas do índice Fortune 500 – que reúne as 500 maiores companhias americanas – cerca de dois terços estão registradas no estado, incluindo gigantes como Amazon, Google, Meta, Apple, Coca-Cola, Visa, MasterCard e Walmart.
Essas empresas estão legalmente constituídas em Delaware, mas a grande maioria não mantém presença física nem operações reais no estado. Trata-se de um fenômeno estrutural: o registro em Delaware oferece vantagens jurídicas e fiscais tão atrativas que companhias de todos os tamanhos escolhem o estado como um mero “endereço oficial”, embora suas atividades concretas ocorram em outros locais. A Meta, por exemplo, é formalmente registrada em Delaware, mas sua sede e suas principais operações ficam na Califórnia.
A transformação de Delaware começou no início do século XX. Até então, o estado vizinho, Nova Jersey, era o destino preferido das empresas que buscavam legislações flexíveis. Mas esse cenário mudou quando o então governador de Nova Jersey – e futuro presidente dos EUA – Woodrow Wilson decidiu endurecer as regras corporativas do estado.
Delaware aproveitou a oportunidade. Em 1899, promulgou a Delaware General Corporation Law (DGCL), considerada a legislação empresarial mais moderna e flexível do país. A lei permitia estruturas societárias simples, pouco burocráticas e de baixa governança, criando um ambiente legal extremamente atrativo para empresas de todos os portes. O DGCL tornou-se a pedra fundamental do modelo que, décadas depois, colocaria Delaware no mapa global das finanças.
Embora o DGCL tenha estabelecido a base jurídica, o restante do arcabouço regulatório – como incentivos fiscais e maior anonimato aos sócios – foi consolidado mais tarde, especialmente a partir da década de 1920. Essas medidas, presentes em outras leis estaduais e interpretações administrativas, ampliaram o conceito de “empresa domiciliada, mas não operante” em Delaware.
O estado passou a isentar de impostos empresas que atuam fora de seu território, além de permitir a criação de sociedades com exigências mínimas de divulgação sobre seus proprietários. O processo de registro tornou-se rápido e barato: é possível abrir uma empresa em menos de uma hora, totalmente online, sem pisar no estado ou apresentar identificação – basta contratar um agente local.
Outro fator decisivo foi a consolidação da Court of Chancery, tribunal especializado em disputas empresariais. Com mais de 200 anos de tradição, a corte tornou-se referência mundial em direito societário, conhecida pela agilidade, previsibilidade e alto nível de especialização de seus juízes.
O resultado desse conjunto de incentivos é claro: Delaware criou o ambiente jurídico mais previsível e eficiente dos Estados Unidos. E isso atraiu um fluxo crescente de empresas de todo mundo, mesmo sem qualquer atividade econômica real no estado.
Levantamentos recentes apontam que dezenas de empresas brasileiras registraram ao menos um sócio pessoa jurídica em Delaware. São geralmente grandes corporações e startups de tecnologia, sobretudo com relevante presença nos EUA ou listadas em bolsas americanas. Entre os casos mais conhecidos estão Ambev, JBS, OGX, CVC, além de uma série de empresas de tecnologia e fintechs – incluindo Nubank, XP Inc., PagSeguro e StoneCo – e até instituições financeiras tradicionais, embora nem todas tornem públicas os detalhes de suas estruturas societárias. Na prática, esse movimento não implicou necessariamente uma migração operacional, já que a maior parte das atividades permanece no Brasil.
[Os desafios das autoridades brasileiras para fiscalizar a complexa estrutura das offshores foram assunto do artigo anterior, “As Cidades Invisíveis do Dinheiro: Onde se Escondem as Fortunas Ilícitas” (13/11/2025).]
Entre todas as facilidades oferecidas por Delaware, a possibilidade de constituir uma empresa de forma anônima é a que recebe mais críticas. Não é incomum que indivíduos envolvidos em atividades ilícitas criem empresas de fachada no estado e, por meio delas, invistam ou adquiram negócios em outros estados ou países, dificultando a identificação dos beneficiários finais.
Outro ponto polêmico é a chamada “brecha de Delaware”, um artifício legal que permite às empresas reduzir o pagamento de impostos corporativos em outros estados. Funciona assim: a empresa cria uma subsidiária em Delaware e transfere para ela seus ativos intangíveis – como marcas, patentes e direitos autorais. Essa subsidiária, então, cobra royalties das demais unidades espalhadas pelo país. Os pagamentos são contabilizados como despesas, reduzindo a base tributária onde há imposto – enquanto, em Delaware, esses rendimentos não são tributados.
Enquanto governos do mundo inteiro endurecem regras para combater a evasão fiscal, a lavagem de dinheiro e estruturas empresariais opacas, Delaware tornou-se um símbolo de como brechas legais podem ser exploradas para permitir que corporações globais operem à sombra das fronteiras regulatórias.
Embora não se possa afirmar que Delaware tenha se proposto, originalmente, a ser a capital das “empresas fantasmas”, a combinação de legislação flexível, benefícios fiscais e pouca transparência acabou criando um ambiente perfeito para isso. O resultado foi a consolidação de um ecossistema corporativo que, muitas vezes, passou a ser usado para fins ilícitos, como evasão fiscal e lavagem de dinheiro.
O que pode ter começado como uma estratégia para atrair negócios acabou transformando Delaware na “capital mundial das empresas fantasmas” – um paraíso fiscal dentro da maior economia do planeta.▪️
Gustavo D. Santos
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