A promessa de transparência das criptomoedas esbarra em uma realidade complexa: rastrear o dinheiro virtual é tão difícil quanto compreender o poder que ele movimenta.
Quando Donald Trump concedeu perdão a Changpeng “CZ” Zhao em outubro de 2025, a porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, descreveu o fundador da maior exchange (plataforma de troca) de criptomoedas do mundo como vítima de uma caça às bruxas política. “A guerra do governo Biden contra as criptomoedas acabou”, declarou Leavitt.
Zhao e sua empresa, a Binance, haviam se declarado culpados em novembro de 2023 por operar sem as garantias básicas para prevenir o crime de lavagem de dinheiro. As autoridades alegaram que ambos permitiram transações destinadas a “terroristas, cibercriminosos e pedófilos”.
Zhao aceitou renunciar ao cargo de diretor-executivo, e a empresa se comprometeu a mudar suas práticas. Nada disso aconteceu.
Entre a declaração de culpa e o perdão a Zhao, a Binance continuou lucrando centenas de milhões de dólares em transações de criptomoedas ligadas a alguns dos grupos criminosos organizados mais famosos do mundo, segundo análise do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês), publicada em novembro de 2025.
Enquanto a empresa estava sob a supervisão de um monitor designado pela Justiça, pelo menos 408 milhões de dólares em moedas digitais fluíram para contas da Binance a partir do Grupo Huione, uma financeira sediada no Camboja utilizada por quadrilhas criminosas chinesas para lavar dinheiro proveniente do tráfico de pessoas e de esquemas de fraude em escala industrial, de acordo com a análise do ICIJ.
A Binance não foi a única. Em fevereiro, a OKX, outra das maiores exchanges de criptomoedas do mundo, se declarou culpada nos Estados Unidos por operar como transmissora ilegal de dinheiro e concordou em contratar um consultor de compliance designado pela Justiça. Apesar disso, as contas de clientes da OKX continuaram a receber centenas de milhões de dólares do Grupo Huione, incluindo mais de 161 milhões de dólares, segundo a investigação do ICIJ.
As conclusões do ICIJ mostram como as empresas de criptomoedas lucram com atividades ilícitas sem temer as consequências, enquanto deixam as vítimas dos criminosos sem recursos. Além disso, resta saber até que ponto as plataformas estão dispostas a colaborar, já que regulações e medidas de compliance podem reduzir suas a receitas, que dependem em grande parte das taxas por transação. “Se eles expulsam os criminosos da plataforma, perdem uma fonte importante de receita. Então há um incentivo para permitir que essa atividade continue”, afirma John Griffin, especialista em dados de blockchain da Universidade do Texas em Austin.
“As criptomoedas oferecem aos criminosos um sistema financeiro muito mais eficiente em comparação aos velhos tempos, quando um cartel precisava colocar dinheiro em espécie no porta-malas de um Cadillac”, finaliza Griffin.
Com esse preâmbulo, iniciamos nosso artigo.
Criadas sob a promessa de liberdade financeira e descentralização, as criptomoedas transformaram profundamente a forma como o mundo entende e utiliza o dinheiro. Baseadas em códigos e não em bancos centrais, elas permitiram que milhões de pessoas transacionassem valores fora do alcance de governos e instituições tradicionais. No entanto, essa mesma autonomia deu origem a um novo tipo de poder paralelo – um ecossistema digital onde o anonimato e a falta de fronteiras desafiam a capacidade de controle e rastreamento das autoridades.
Criptomoedas são moedas digitais descentralizadas que utilizam criptografia para garantir a segurança das transações, controlar a criação de novas unidades e verificar a transferência de ativos. Elas operam sobre a tecnologia blockchain – um registro público, descentralizado e imutável, que valida e armazena todas as transações realizadas, dispensando intermediários. Diferente das moedas tradicionais, como o real ou o dólar, elas não são emitidas por governos ou bancos centrais e operam de forma descentralizada.
Mais do que uma simples forma de dinheiro digital, as criptomoedas desempenham múltiplos papéis no cenário financeiro atual. Elas funcionam como ativo de investimento e reserva de valor – uma espécie de “ouro digital”. Além disso, sua tecnologia permite transferências internacionais rápidas e de baixo custo, eliminando a necessidade de intermediários tradicionais, como bancos. Também servem de base para os chamados contratos inteligentes, que automatizam acordos de forma segura e transparente.
Apesar da ideia conceitual de uma moeda digital ter nascido antes, o marco fundador de criação da primeira criptomoeda – o Bitcoin – ocorreu em 2008, com a publicação do artigo Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System. Após o lançamento, seu código-fonte foi disponibilizado publicamente, ocorrendo a primeira transação em janeiro de 2009, o que representou o nascimento real da criptomoeda no mundo.
Em maio de 2010, foi registrada a primeira compra real com Bitcoin. O programador Laszlo Hanyecz fez história ao comprar duas pizzas por 10.000 BTC. Na época, valiam cerca de US$ 41 – hoje, equivaleria a centenas de milhões de dólares. Esse acontecimento lançou as bases para o que se tornaria o mercado global de criptomoedas que conhecemos hoje.
Como qualquer ativo financeiro, a legislação brasileira obriga que as criptomoedas sejam declaradas à Receita Federal. Mesmo sem lucro ou movimentação, a posse deve constar na Declaração Anual de Imposto de Renda (DIRPF), caso o valor de aquisição de cada tipo de criptoativo seja igual ou superior a R$ 5.000,00.
Além da posse, as transações com criptoativos podem gerar ganho de capital – sujeitos à tributação. Para pessoas físicas, há isenção para vendas (alienações) que somem até R$ 35 mil por mês. Acima desse valor, os lucros (ganhos de capital) devem ser apurados e aplica-se uma alíquota progressiva, que varia de 15% a 22,5%.
No universo das criptomoedas, discutir controle significa, antes de tudo, discutir rastreabilidade. É por isso que a rastreabilidade digital se tornou o eixo central do debate sobre o combate a crimes financeiros – um terreno em que transparência técnica convive com opacidade prática. Como grande parte dessas transações ocorre fora do alcance direto de governos e instituições financeiras tradicionais, surgem desafios relevantes tanto para autoridades quanto para empresas que tentam acompanhar esse fluxo paralelo de dinheiro digital.
Embora as transações em blockchains sejam públicas, rastrear quem está por trás delas é uma tarefa complexa.
A maioria das criptomoedas são pseudônimas, não anônimas. Isso significa que as transações são registradas publicamente na blockchain e vinculadas a endereços de carteiras (sequências alfanuméricas), mas não diretamente à identidade do usuário. A dificuldade reside em ligar o endereço de uma carteira a uma pessoa ou entidade do mundo real. Assim, se o criminoso nunca interagir com uma entidade regulamentada, o pseudônimo pode se manter efetivamente anônimo.
Serviços e protocolos que misturam fundos de diferentes usuários – conhecidos como Mixers ou CoinJoin – são empregados para romper a trilha de rastreamento, tornando a origem e o destino das moedas praticamente indistinguíveis.
Os Mixers são serviços centralizados ou descentralizados que recebem criptomoedas de vários usuários e as misturam em um grande pool, enviando de volta moedas “limpas” de diferentes origens. Já os CoinJoin são protocolos que permitem que múltiplos usuários combinem suas transações em uma única grande transação. Além disso, algumas criptomoedas são construídas com mecanismos criptográficos avançados que tornam o rastreamento quase impossível por design.
Outro desafio crucial está na ausência de regras globais uniformes para o setor. A natureza transnacional das criptomoedas desafia as fronteiras legais e a cooperação entre países, criando brechas jurisdicionais que são exploradas por criminosos. Uma transação pode ser iniciada em um país, passar por um Mixer hospedado em outro e terminar em uma carteira em um terceiro país. A aplicação da lei precisa navegar por diferentes jurisdições, leis de privacidade e níveis de cooperação internacional, o que pode ser lento e ineficaz.
Ademais, se os fundos estiverem em uma carteira que o criminoso controla totalmente (sem intermediários), as autoridades não podem simplesmente emitir uma ordem judicial para congelar os ativos. A recuperação depende da obtenção da chave privada do criminoso, o que é extremamente difícil e, muitas vezes, impossível.
Assim, a combinação de técnicas de privacidade, falta de regulamentação global e ferramentas de obscurecimento torna a rastreabilidade digital um grande desafio, criando um campo de batalha constante entre os aplicadores da lei e aqueles que buscam o anonimato, seja por privacidade legítima ou para fins ilícitos.
Enquanto governos e instituições financeiras correm para acompanhar o ritmo das inovações digitais, as criptomoedas continuam avançando em um território onde a fronteira entre liberdade e ilegalidade se torna cada vez mais difusa. A promessa de autonomia individual se choca com o uso crescente desses ativos para lavagem de dinheiro, evasão fiscal e financiamento de atividades criminosas.
No fim, o desafio da rastreabilidade não é apenas tecnológico – é também ético e social. O mesmo sistema que empodera o cidadão acaba, paradoxalmente, alimentando estruturas paralelas de poder.▪️
Referências:
- International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ): “Crypto giants moved billions linked to money launderers, drug traffickers and North Korean hackers” (novembro, 2025)
- Agência de jornalismo investigativo: apublica.org
- Portal gov.br: “Declarar operações com criptoativos”
- Receita Federal: www.rfb.gov.br
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