Entre a promessa de modernização e o risco de ampliar desigualdades, o fim do Drex como moeda digital expõe nossas fragilidades estruturais.
O Drex, a moeda digital que vinha sendo desenvolvida pelo Banco Central, entrou no debate público como uma promessa de modernização e inclusão. No entanto, em 2025, o projeto passou por uma reviravolta: sua infraestrutura tecnológica foi descontinuada após o BC concluir que ela não atendia a requisitos essenciais de segurança, privacidade e escalabilidade.
O Drex não foi totalmente descartado – está sendo redesenhado. A plataforma original baseada em blockchain será abandonada, dando lugar a uma nova arquitetura tecnológica ainda em definição. O foco também muda: o Drex deixa de ser pensado como “moeda digital para uso cotidiano” e passa a ser projetado principalmente para a tokenização de ativos, garantias de crédito e liquidação entre instituições financeiras. A nova fase prevê um reinício em 2026.
A decisão foi técnica, mas expõe algo mais profundo: o Brasil ainda não enfrentou a dupla exclusão – financeira e digital – que segue afastando milhões de pessoas da economia contemporânea.
A interrupção do Drex não elimina a ideia de uma moeda digital brasileira no futuro. Mas expõe, de forma contundente, que nenhum projeto desse porte pode prosperar enquanto o país reproduzir barreiras estruturais que impedem milhões de brasileiros de participar plenamente do sistema financeiro e do universo digital. Inclusão não é apenas uma questão de tecnologia: é de infraestrutura, renda, formação, acessibilidade e desenho de políticas públicas.
Modernizar o sistema bancário não é sinônimo de democratizar o acesso a ele.
O avanço das criptomoedas desde o início dos anos 2000 – do Bitcoin às stablecoins lastreadas em dólar, ouro ou petróleo – mostrou que era possível transferir valores globalmente, sem bancos e sem fronteiras. A ameaça aos bancos centrais foi clara: velocidade, liquidez e acesso estavam sendo oferecidos fora do sistema tradicional.
Em resposta, diversas autoridades monetárias começaram a desenvolver versões digitais de suas moedas oficiais, as CBDCs (Moeda Digital de Banco Central, na sigla em inglês). A promessa era dupla: absorver a inovação tecnológica e ampliar a inclusão financeira, sem perder o controle regulatório que garante a estabilidade econômica do país.
A primeira moeda digital oficial de banco central totalmente lançada e disponibilizada à população foi o Sand Dollar, das Bahamas, em outubro de 2020. Embora países como China (com o yuan digital) e Suécia (com a e-krona) estivessem em fases avançadas de teste, as Bahamas foram as primeiras a tornar sua CBDC operacional em nível nacional. O Brasil seguiu o mesmo caminho: iniciou estudos em 2020, batizou o projeto de “Drex” em 2023 (o “X” remetendo ao Pix e ao vocabulário digital do século XXI) e planejava concluir testes finais a partir de 2025.
Esse movimento se apoia em uma tendência global de redução do uso de dinheiro físico. No Brasil, ele representava 48% dos pagamentos em 2019; caiu para 22% em 2023; e pode chegar a 12% até 2027, segundo a Worldpay. Porém, entre as classes D e E – que representam mais da metade da população – as cédulas ainda predominam. Em regiões remotas, a modernização da economia esbarra em conectividade instável, ausência de serviços digitais e infraestrutura precária.
Para o professor Luciano Nakabashi, da FEA-USP, defender um país sem dinheiro em espécie ignora uma realidade ainda pouco debatida: milhões de brasileiros continuam estruturalmente excluídos do sistema financeiro. “O pagamento por Pix é mais fácil, o que explica sua proliferação, mas não faz sentido acabar com as cédulas físicas enquanto parte da população não tem acesso a contas bancárias”, afirma. Ele ressalta ainda o direito ao anonimato e as limitações de infraestrutura em áreas remotas.
E os números confirmam o desafio. Em 2024, segundo o IBGE, 20,5 milhões de brasileiros com 10 anos ou mais não tinham acesso à internet, o que representa 10,9% da população. Entre as razões estão falta de conhecimento, baixa escolaridade, limitações econômicas e preocupação com privacidade.
De acordo com o Banco Central do Brasil e a Federação Brasileira de Bancos, o país avançou na inclusão financeira de baixa renda – impulsionado pela expansão do Pix, fintechs, digitalização bancária e políticas como os programas de crédito do trabalhador e o Bolsa Família – mas gargalos ainda persistem. O superendividamento cresce, a educação financeira ainda é frágil e o uso consciente de ferramentas digitais continua limitado.
O custo de acesso reforça o problema. Smartphones, computadores e planos de internet seguem inacessíveis para boa parte da população. E, mesmo quando a conectividade existe, faltam habilidades digitais básicas, o que mantém as pessoas vulneráveis a golpes, exclusão ou dependência de terceiros.
A exclusão digital e financeira segue um recorte socioeconômico bem definido, afetando desproporcionalmente pessoas de baixa renda, indivíduos com menor escolaridade, idosos e minorias. Ou seja, “tem cor, endereço e idade”. E o capacitismo estrutural[1] adiciona ainda outra camada silenciosa de afastamento. No Brasil, a maior parte dos sites e aplicativos, inclusive bancários, não é projetada com acessibilidade adequada. Isso cria um ecossistema que exclui não pela intenção, mas pela interface, reforçando desigualdades que a tecnologia deveria reduzir.
Superar a dupla exclusão vai muito além de lançar uma moeda digital ou expandir o 5G. Exige atacar as raízes do problema: infraestrutura em áreas remotas, acesso subsidiado a dispositivos, educação financeira e digital em larga escala, e acessibilidade como pilar obrigatório de qualquer serviço tecnológico.
A suspensão do Drex expõe uma questão fundamental: o Brasil ainda não está pronto para um sistema financeiro totalmente digital se ele não for, antes, totalmente inclusivo. Sem esse passo, qualquer inovação corre o risco de repetir o padrão histórico: prometer modernização enquanto deixa – como sempre – os mesmos para trás.▪️
[1] Capacitismo estrutural é a organização da sociedade em padrões que privilegiam quem não tem deficiência e tornam a vida de pessoas com deficiência mais difícil – seja no acesso, na tecnologia, no trabalho, na educação ou na mobilidade. É a exclusão que não aparece como violência, mas como “norma”.
Referências:
- Agência IBGE
- Banco Central do Brasil
- Federação Brasileira de Bancos (Febraban)
- Jornal da USP (novembro, 2024)
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